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E Agora?
   

Em E AGORA? referimos brevemente a origem do vírus da sida (VIH).

Não seria possível no contexto do filme tratar este tema em detalhe. Assim, condensamos aqui informação que nos parece relevante.

Desde a descoberta do VIH no início dos anos 80, a sua origem tem sido objecto de debates e discussões intensas, muitas vezes contaminadas por posições ideológicas e interesses específicos. O VIH pertence ao grupo dos retrovírus e é um lentivírus, e como todos os vírus deste grupo, ataca o sistema imunológico.

Lentivírus significa literalmente "vírus lento" porque leva um período longo até que os seus efeitos sejam visíveis no corpo. São comuns em vários animais que compartem o ambiente com o homem, como gatos, ovelhas, cavalos e gado. Contudo, o lentivírus que despertou a atenção nessa investigação foi o VIS (vou referi-lo como Simian Immunodeficiency Virus, SIV) que afecta os símios.

Após 10 anos de investigação, em Fevereiro de 2009, um grupo de investigadores da Universidade do Alabama anuncia ter descoberto uma variante do SIV que era quase idêntica ao HIV-1. Afirma que o VIH provém de chimpanzés e que em algum momento atravessou a barreira entre espécies. Dois anos mais tarde publicam um novo estudo na revista Nature onde afirmam que chimpanzés selvagens contaminados com duas variantes distintas do SIV, se tinham recombinado por "sexo viral", dando origem a um terceiro vírus capaz de contaminar humanos, um processo comum na transmissão entre espécies

Questões sobre o momento em que aconteceu essa transmissão (ou zoonose) e o que terá levado à expansão do VIH têm dado origem a teorias diferentes e em alguns casos contraditórias;

a) Teoria do "caçador" - O SIVcpz teria sido transferido como resultado da caça e consumo de chimpanzés por humanos, ou pelo contacto do seu sangue com cortes ou feridas.

b) Teoria da (OPV) vacina Polio oral - O jornalista e investigador Edward Hooper publicou em 1999 "The River", um extenso livro onde sugeria que o HIV podia ser associado a uma vacina contra a poliomielite que teria sido dada a cerca de um milhão de pessoas em vários países africanos (Congo Belga, Ruanda, Urundi), fabricada a partir de células de chimpanzés locais portadores de SIV.

c) Teoria da "agulha contaminada" - Nos anos 50, as seringas descartáveis não eram usadas. Em países pobres era comum a utilização da mesma seringa para administração de vacinas ou drogas a diferentes pessoas, e essa prática teria levado à transmissão de um caçador infectado a grupos de populações.

d) Teoria do colonialismo - Esta teoria baseia-se também na ideia de uma transmissão através da caça e/ou consumo de carne de símios, mas defende que no final do século XIX ou início do século XX, na região da África equatorial francesa e do Congo Belga, o domínio colonial era particularmente violento e muitos africanos eram forçados a integrar campos de trabalho com condições sanitárias e alimentares degradadas, o ambiente ideal para a propagação do VIH a partir de alguém infectado.

A Teoria da vacina Polio oral foi encarada com desconfiança e indisponibilidade pela indústria farmacêutica, o que levantou dúvidas a cientistas de várias áreas. O mais proeminente foi William D. Hamilton, um conceituado evolucionista e um dos pilares da sociobiologia, que 2000, deixa Oxford na companhia de um jovem biólogo evolucionista (Michael Worobey). Partem para uma expedição arriscada a Kisangani (perto do rio Congo), onde o laboratório belga que produzia as vacinas mantivera os chimpanzés em cativeiro.

Cinquenta anos mais tarde, a área tinha sido invadida pela selva, e efectuar recolhas de dejectos de chimpanzés selvagens para poder isolar partículas de vírus revelou-se um pesadelo. Essa aventura no meio da guerra civil na República Democrática do Congo teve um final inesperado; Worobey feriu-se numa mão e a ferida rapidamente infectou. Hamilton foi afectado pela malária. Ambos tiveram que ser evacuados de urgência. Após semanas de sofrimento, sempre acompanhado por Worobey, Hamilton sucumbiu a uma febre hemorrágica intestinal.

Worobey só veio a encontrar traços de SIV em duas amostras de urina de chimpanzés, insuficientes para confirmar a hipótese de Hamilton. Frustrado pelos resultados, regressa em 2003 e consegue isolar 100 amostras com variantes de SIV que lhe permitem verificar se o VIH é resultante de SIV de chimpanzés descendentes dos exemplares mantidos em cativeiro no laboratório belga.

Depois de completar o trabalho de laboratório, consegue estabelecer uma árvore genética das várias amostras de vírus da região de Kisingani. São suficientemente afastadas entre si e do VIH para que a transmissão ao homem tenha ocorrido no período de tempo em que as vacinas foram administradas. A transmissão terá sido anterior.

A equipa da Universidade do Alabama concentra-se na investigação do HIV-1 grupo M (responsável pela maioria das mortes em todo o mundo). Organiza uma rede alargada de recolha de amostras de chimpanzés no sul dos Camarões e finalmente encontra perto do rio Sangha (afluente do rio Congo, descoberto para os europeus por Diogo Cão em 1483), versões do SIV quase indistinguíveis do HIV-1. A transmissão inicial terá ocorrido aí. O rio é de difícil navegação, mas comunidades próximas descem através do rio Congo até Kinshasa, a cidade mais próxima com dimensão e densidade suficiente para originar uma epidemia, a um passo das províncias do Uíge, Zaire e Cabinda em Angola.

Worobey, intrigado por esta descoberta, procura amostras de biopsias efectuadas no Congo Belga no final dos anos 50. Depois de muitas tentativas e emails, a Universidade do Kinshasa envia para o seu laboratório no Amazona biopsias conservadas em parafina. Worobey encontra amostras de tecidos linfáticos com VIH. O trabalho de "multiplicação" das partículas demora vários meses. Finalmente, compara-as com uma amostra de sangue com HIV recolhida num marinheiro proveniente do Kinshasa em 1959. Tinha estado congelada nos EUA desde então e fora redescoberta recentemente.

Analisando as mutações dos vírus e os seus "relógios genéticos", Worobey consegue estabelecer com precisão a janela de tempo em que a transmissão ocorreu; entre 1884 e 1924. Estudos posteriores estreitam a janela no final do século XIX, pouco tempo depois da fundação de Kinshasa, em 1881. No seu artigo publicado na revista Nature em Outubro de 2008 estabelece a ligação entre o início da infecção e a presença dos primeiros aglomerados urbanos e centros administrativos e comerciais coloniais. Kinshasa permitiu à região tornar-se o epicentro da pandemia de HIV e sida.

O VIH da região do Sangha desceu pelo rio Congo até Kinshasa, que se tornou rapidamente a maior cidade interior da África sub-saariana, e desse epicentro expandiu-se para todo o globo em rotas que hoje são conhecidas.

 

Hamilton Worobey
(Hamilton and Worobey na expedição de 2000)

William D. Hamilton (Wikipedia)

William D. Hamilton (obituário, The Guardian)

Michael Worobey (Un. Arizona)

Michael Worobey (Vimeo)

     

Coincidências?

Durante as noites de insónia que acompanharam o ano de tratamentos experimentais, pensei várias vezes no nictógrafo, uma invenção de Lewis Carrol que lhe permitia, com um sistema de pontos e linhas, tomar notas e registar ideias durante a noite, na completa escuridão.
W. D. Hamilton foi um dos primeiros defensores da hipótese da Raínha Vermelha, inspirada na personagem do "Alice do Outro Lado do Espelho", que defende a origem do sexo como uma forma de recombinação de genes que permite a defesa contra parasitas. Esta hipótese foi proposta por Leigh Van Valen (1935 - 2010), outro biólogo evolucionista com uma obra fascinante. A sua hipótese foi confirmada experimentalmente pela primeira vez por cientistas da Universidade de Liverpool no ano da sua morte.

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